sábado, 29 de outubro de 2011

Riga


Não sei porquê não me apetece escrever. E não me tem apetecido nos últimos dias. Estou de momento algures perto de Liege, na Bélgica. Deixei Berlim com o objectivo de chegar ao Luxemburgo, mas com a ideia mais realista de ficar em Dortmund. Mas a cena é que acordei às dez e tal, e quando cheguei à estrada eram duas da tarde. Ora a minha ideia de Dortmund era caso se estivesse a fazer tarde assentar aí. Mas a cena é que se fez tão tarde, que achei melhor boleiar pela noite dentro. Mas agora é meia-noite, há poucos carros, e poucos vão para sul. Nenhum. E desta vez acredito mesmo, não acho que seja couro.

Hoje pensava que algumas pessoas, ao perceberem que as vou abordar, olham para mim como se eu estivesse a vender sida. Está bem que sou um gajo e tenho uma pera de meio palmo e um bigode que atrapalha os lábios, mas também tenho um sorriso, que ofereço sempre. Mas não chega. E assim percebo como é curioso o facto da boleia me mostrar, tanto quão fixes as pessoas podem ser, como quão cagativas. Às vezes apanham-me e sinto aquela bondade a fazer-me uma massagem. Outras vezes reagem de uma forma que, fora eu mais sensível, sentiria um pontapé nos tomates. Enfim.

Cheguei a Riga dia três de Outubro de manhã. A Graciete chegaria duas ou três horas depois. Fui à net na estação de autocarros, reservei um hostel ali perto que parecia porreiro, e mandei-lhe mensagem com as instruções.

O Frank’s Friendly Fun Hostel, onde ficámos, é um hostel muito fixe. Está no top dez. Juntamente com a Mama Naxi em Lijiang, na China, o Blue Budha na Ericeira, aquele em Veliko Tornovo na Bulgária (o melhor de sempre) e outros. Tomei banho e, qual donzela à espera do seu príncipe, aguardei impacientemente com viagens frequentes à janela que dava para o rio e consequentemente para a paragem de autocarros. Até que a vi chegar. Desci as escadas em velocidade recorde e abraçámo-nos. Tinham passado quatro meses desde que nos encontráramos na Índia, e na última semana pensara muito em como varia a forma como tenho saudade. Não só dela como de tudo. E acho que não devo estar sozinho, ou assim o espero. É que a minha saudade não é uma saudade muito lógica, que aumenta gradualmente com o tempo. É uma saudade indecisa e maníaca, que tanto surfa qualquer onda como relaxa na areia a beber um mojito. Outra cena é que não tenho tanto saudades das pessoas em si. Mas daquilo que fazíamos juntos. Seja ir à bola com o meu pai, tomar café no Sombrinha com a minha mãe, entre outras pessoas e actividades. Se calhar é a isso que chamam saudades das pessoas, mas talvez seja algo um pouco diferente. Como mais saudades de estar com em vez de saudades de.

Nesse primeiro dia não fizemos practicamente nada que tenha a ver com Riga. Passámos a tarde no quarto até às seis e tal, levantámo-nos, ela tomou banho, e fomos comprar qualquer coisa para comer. Voltámos ao hostel num ápice e tomámos conta da cozinha, que recebeu os aromas do queijo, chouriça e presunto tuga que a minha mãe tinha mandado. Abrimos uma ou duas garrafas de vinho e ficámos ali a por a conversa em dia, até que o novo repouso era imperial.

No dia seguinte juntámo-nos a uma tour grátis (com gorgeta encorajada) acerca dos tempos soviéticos em Riga. Aquela tour seria perfeita para alguém muito mais novo que nós, ou muito mais velho. A miuda era fofinha e tinha daquelas piadas sem piada nenhuma mas que são ditas de uma forma que nos deixa uma vontade incrível de ir lá apertar a bochechita. Condescendente, eu?

- Sabem que aqui temos uma máquina do tempo, – dizia, no início da tour – mas para isso temos de... saltar todos ao mesmo tempo, e aterrar em mil novecentos e troca o passo – e o pessoal lá saltava para lhe fazer a vontade. Cínico, eu?

Mas foi fixe. Andámos pela cidade também, mas foi uma cena mais orientada para a ocupação soviética. Visitámos um ou dois museus grátis, e no final demos alguns euros de gorgeta, enquanto bebíamos um shot horrível que era oferta dum bar.

Depois da tour fomos a casa arranjarmo-nos para irmos jantar. Era o nosso aniversário e o Moreira tinha oferecido o jantar. Demorámos p’rai uma hora a encontrar um restaurante que se apropriasse. É que primeiro tínhamos na ideia um restaurante medieval que nos tinham sugerido. Mas parecia exageradamente caro, por isso seguimos caminho, até que finalmente encontrámos um italiano muito porreiro. Que nem por isso foi barato, igualmente.

Saímos do restaurante um bocado lançados, e esse lanço levou-nos para o Folk Bar. Havia um encontro de couchsurfers lá, organizado pelo Jorgen, um amigo norueguês que tinha conhecido em Edinburgo no ano anterior. Foi muito fixe, e a Graciete estava naquele estado de graça em que o seu inglês triplica – ou pelo menos diminui três vezes a sua inibição em falar uma língua que não domina. E à conta disso passámos bué de tempo a falar com este e com aquele. Foi fixe ter encontrado o Jorgen, um gajo muito inteligente e porreiro que está em Riga há seis anos, trabalhando como tradutor.
Daí fomos para outro bar qualquer, e desse para ainda outro. Foi uma boa noite, muita risada e bons momentos. Curti.

Acordámos no dia seguinte mesmo a tempo de fazer o check-out. Tínhamos combinado com a Sabine encontrarmo-nos às seis da tarde desse mesmo dia naquela estátua. Assim, deixámos as cenas no hostel e fomos dar uma volta pela cidade. E que surpresa foi! Tanto essa tarde como as anteriores, mas essa tarde foi aquela em que fizemos mais “turismo” à séria. A surpresa não foi tanto a cidade ser fixe, mas o facto de eu lá ter estado sete anos antes, e não me lembrar de absolutamente nada! Tinha lá estado com um grupo enorme (p’rai vinte e tal) pessoas – os meus amigos de erasmus na Finlândia, e o meu irmão. Devemos ter curtido em demasia e aproveitado só uma parte de Riga. Uma das poucas memórias que tenho é estarmos num bar muito retro (mas sem ser de uma maneira fixe), onde letãos cantavam um karaoke horrível. Gozámos com eles apenas um pouco cedo demais. Porque quando volto a olhar passado uma hora é o meu irmão que lá está a cantar uma cena tipo Shakira ou algo pior. E depois éramos todos no palco. Cenas.

O centro de Riga está dividido entre a parte velha, com as ruas em calçada e uma epidemia de igrejas, e a parte mais nova, que apesar de o ser, é-o de uma forma muito airosa e arranjadinha. Passeámos por aí umas horas, até que voltámos para ir buscar as cenas ao hostel, para irmos ter com a Sabine.

A Sabine é uma letã de vinte e cinco anos (acho) que albergara o Hugo e o Bruno p’rai uma semana antes. “Claro que podes ficar, eu nunca digo que não a pessoas portuguesas!”, respondeu, quando lhe perguntei se lá poderíamos dormir. Por acaso é uma cena de que a malta até se pode orgulhar, se se quiser orgulhar com os feitos dos outros. Há alguma coisa que os tugas estão a fazer bem – é que muita gente nesta viagem gosta de nós. Seja pessoal que conheceu na estrada, ou pessoal que conheceram quando visitando as terras do Viriato.

Trabalha de momento a p;or publicidade em sites ou uma cena assim qualquer, e está acabar o mestrado em algo que já não me recordo. E não está muito feliz com a sua VIDA.

- Sabes... – disse-me, na manhã seguinte – ontem não conseguia dormir a pensar nas tuas perguntas... é que eu disse que sim, que era feliz, quando me perguntáste... mas foi mais uma reacção do que algo pensado. Porque na verdade não estou feliz de momento... tenho de trabalhar em algo que não gosto, mas não me posso despedir porque tenho de pagar as contas... e isso não ajuda. Além do mais preferia viver no campo, como te disse – e é aqui que eu entro em conflito. Porque eu defendo com força que se um gajo não está feliz com uma situação, tem de a mudar e já está! Mas às vezes já condicionantes que nos lixam. E tenho de aceitar que às vezes, às vezes, uma pessoa tem de aguentar um bocado até chegar onde quer. Mas esta fase de não se estar bem tem de ser uma fase. Apenas uma fase. Tem de ser algo temporário e temos de saber mais ou menos quando vai acabar, e o que vamos fazer para nos encontrarmos connosco próprios. Acho que o pior é que às vezes esta merda suga um gajo e depois é difícil sair. Ou assim me parece, caso contrário toda a gente seria feliz.

No início a conversa estava um bocado perra. Sentámo-nos na sala a beber um chá e eu sentia que tinha de mandar as perguntas de chacha. Mas felizmente foi só no início. Saímos passado um bocado, ela queria-nos mostrar uma vista porreira da cidade, e a cena começou a fluir, e tivemos oportunidade de conhecer uma pessoa dócil e descomplicada. Tinha estado em erasmus em Portugal e apaixonou-se por um rapaz que conheceu porque lhe deu uma boleia do centro do Porto para o hotel onde estavam. Incríveis estas cenas. Adoro esta aleatoridade da VIDA. Se outra pessoa qualquer a tivesse apanhado, ela não tinha acabado por ir visitar o Porto cinco vezes em cinco meses. Mas agora o rapaz vai trabalhar para o Brasil...

Cozinhámos, jantámos enquanto conversávamos acerca da sua família, e depois vimos o Trainspotting antes de irmos dormir.

No dia seguinte seguimos para Vilnius, onde nos esperaria a Zoe, a nossa anfitriã australiana.

uma e um da manhã, dezoito de outubro de dois mil e onze
algures entre Berlim e o Luxemburgo






quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Moscovo



Já tinha estado em Moscovo, em dois mil e quatro. E na altura, o Erik, meu amigo holandês, viu um cadáver no metro. Eu não vi. Mas pelos vistos não foi uma oportunidade única, porque foi a primeira coisa que vi mal saí da estação...
               
Estou eu a tentar perceber onde estou, quando avisto as escadas do metro. Aproximo-me, e vejo um velho, deitado de barriga para cima, com a camisola levantada até ao peito, e as calças pelos tornozelos. Tem a boca aberta e a cabeça cheia de sangue. À sua volta estavam dois tipos a tirar fotografias, mas pareciam que estavam em trabalho. Detectives ou alguma cena assim. Mas aos seus pés tinha uma grande poça de sangue. Por isso suponho que o gajo caiu de frente, bateu com a cabeça e foi ter uma conversa com o Lenine.
               
Fui caminhando meio à sorte, na esperança de encontrar um sítio com internet. Que apareceu, passado p’rai meia hora. Sentei-me na mochila, e contactei o Andy, o meu anfitrião russo. Depois foi apanhar o metro até à outra ponta da linha treze, ligar-lhe do telemóvel de um simpático transeunte, ter esse mesmo simpático a aparecer passado dez minutos a dizer que o Andy lhe tinha ligado e eu estava no sítio errado, meter-me no metro para mais três quartos de hora de viagem e aí sim, encontrar o chavalo.
               
Apanhámos um táxi e passado cinco minutos estávamos em casa dele. Os táxis na Rússia, tal como na Mongólia, são do mais conveniente possível. É pessoal que anda na VIDA deles e se vê alguém com o braçito esticado, leva-os. Tinha tomado o meu desejado banho, depois de quatro dias, quando apareceu o Tim, australiano que também estava a ser albergado pelo Andy. E que pessoa! Curti mesmo o gajo. Aliás, foi uma grande noite... exactamente como eu queria. É que só tendo uma noite em Moscovo, e sendo essa noite sábado, tinha de ser a partir. E foi tão fixe não só pelos sítios onde fomos, como pelo Andy e o Tim.
               
O Andy é um russo todo p’rá frentex que está farto de Moscovo e se vai mudar para Barcelona, apesar de não abdicar do apartamento que partilha com o Andy (sim, outro). O seu trabalho é, no mínimo, original. É olheiro de modelos em part-time. Isto é, a sua cena é abordar gajas giras e eventualmente contractá-las.
               
- Então em Moscovo ‘tás muita bem! – disse-lhe eu, pensando que estava a apontar o óbvio.
- Não... é que aqui na cidade as mulheres já sabem o que querem da sua VIDA, por isso é muito difícil – ah, ok, muito me contas.
               
O Tim é um australiano que já anda a viajar há alguns anos. De vez em quando vai até casa, trabalhar, ganhar algum guito, e depois volta. Tem trinta e cinco anos, e um pensamento muito à frente. Muito à frente e muito claro e lógico. Um gajo com os seus princípios, que segue e partilha sem fazer deles dogmas. Surfista de hobby já passou por cenas incríveis, como passar não sei quanto tempo no norte da Col;ombia a surfar. Mas a cena não é essa. É que tinha de ir de barco com os pescadores (a quem pagava, claro), que o deixavam no mar, e depois iam lá buscá-lo algumas horas depois. Ele tinha de apanhar a sua ondinha, surfar, depois voltar a nadar para o mesmo sítio. Se lhe apetecesse descansar e ir até à costa, tinha direito a um grande descanso. O descanso eterno. É que aquela zona era uma zona de plantação de droga.
               
- Eu estava numa vila de pescadores... pensei que podia comer bom peixe – dizia-me. – Mas depois disseram-me que não havia peixe... e quando perguntei então que é que eles pescavam, disseram que era a droga que de vez em quando os traficantes têm de mandar fora, por causa da polícia. Apanham-na e vendem-na de volta...

Nessa noite fomos a um encontro de couchsurfers e andámos de bar em bar. Vale a pena referir o último, sendo que foi dos sítios mais chill-out onde já estive. Mesmo perfeito para fim de noite. Um gajo entrava, tinha de tirar os sapatos e davam-nos umas pantufas tipo aladino. A música era suave como uma pena num menino triste, a luz permitia-nos apenas ter uma ideia geral do que se passava, os detalhes perdiam-se naquele sonho. No meio tinha uma estrutura que parecia uma árvore cujo fruto era pequenas zonas de relax. Na parte de cima tinha colchões, na parte de baixo mesinhas e puffs. Ficámos lá uma ou duas horas à conversa com um grupo que tínhamos conhecido momentos antes, e voltámos para casa.

Quando acordei no dia seguinte o Danny tinha ido trabalhar. O meu corpo queixava-se violentamente da noite anterior, mas tinha valido a pena. Com algum esforço caminheio com o Tim e o Andy (colega de casa do Andy anfitrião) até ao McDonalds, o melhor antídoto para dias como aqueles. Voltámos a casa, tomei banho, despedi-me da malta e segui para a estação de autocarro.

Foi interessante sentir que, de certa forma, tinha saudades de cidades europeias. É que na Ásia, para mim, a cena não é esta ou aquela cidade. A maioria das minhas cidades preferidas são cidades ocidentais, como Estocolmo, Budapeste ou Praga. Porque na Ásia acho que é o estar em si que me agrada e deslumbra. E quando há uma localidade em particular que me apaixona, não costuma ser uma cidade mas uma vilita, no máximo, tipo Rishikesh na Índia,  Shangri-La na China ou Hoi An no Vietname.

O próximo destino seria Riga, onde encontraria a Graciete, depois de quatro meses de separação. Estava um bocado nervoso, mas aprazia-me aquele sentimento.

onze e sete, terça, onze de outubro de dois mil e onze
algures entre Kaunas e Varsóvia

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Transsiberiano


Passei noventa e três horas naquele comboio. E foi fixe, muito fixe. Ainda não sei se aquilo era o transsiberiano, ou um outro comboio que atravessa a Sibéria. Mas isso não faz muito sentido, pelo que acho que a primeira opção é a mais provável.
               
Acordei de manhã cedo, fui mandar uns postais e comprar alguma comida para levar. Depois caminhei até à estação, onde cheguei p’rai uma hora mais cedo. Esperei a ouvir música, e quando chegou a altura, entrei. Olhando para o meu bilhete, fui dar a uma cabine onde estava sentado um gajo com aspecto de indiano. Era bengali e não ia viajar – era amigo de um indiano que entretanto aparecera. Eu estava deitado na cama de cima e eles dois mais outro méne estavam sentados em baixo.
               
- Queres vodka? – perguntou o indiano. Não disse que não e dei uns goles. Entretanto apareceu uma rapariga toda ofegante com uma garrafa de vermute. Deduzi que era uma prenda de viagem ou uma cena do género. Mal o comboio arrancou apareceu a pica a pedir para ver o meu bilhete. Mas não pediu para ver se eu tinha realmente um bilhete, como um pica normal, mas porque, não sei como, sabia que eu me tinha enganado. Antes de entrar no comboio tinha-lho mostrado, e ela deve ter decorado. Assim, disse xau ao indiano, que disse que eu podia aparecer quando quisesse, e fui para a minha cabine, três ou quatro cabines acima. Lá estava uma senhora mongol, que ia também em baixo, na cama ao lado da minha.
               
Fui-me entretendo com o computador e cenas do género, e passado p’rai três horas fui esticar as pernas. Entre as cabines encontro o indiano, e uma mulher com aspecto de ser mongol, a fumar. Estavam os dois bêbedos, mas ela estava completamente fora, mal se aguentava em pé. O gajo aguentava-a, de vez em quando davam uns beijos, uma situação caricata pá, e um bocado horripilante. Ver duas pessoas de meia idade aos beijos a um metro de mim quando a gaja mal se aguenta em pé não é muito cool.
               
- Queres ficar com esta mulher? – perguntou-me o indiano, para levar a extremos a falta de fixeza daquele momento.
- O quê? – perguntei, meio incrédulo.
- Ficas com esta, podes fodê-la. Eu já a fodi e agora quero tentar com a outra.
- Hei pá, não, a sério, obrigado, eu estou bem – respondi, meio desconfortável. E a cena é que o gajo parecia surpreendido pela minha resposta, como se recusar uma queca fosse algo que eu tinha inventado na hora.
               
Algumas horas mais tarde, estava eu sentadito no corredor perto da cabine dele, a carregar o telemóvel, quando o gajo me chamou para a cabine dele. Lá fui, sentei-me num cantito e comi umas sandes de presunto com dois ou três copos de vodka. Ele voltou a sugerir eu malhar a outra e nesta altura eu disse que não estava disponível, e ele aligeirou, mas não muito. E apesar da minha recusa, não passei sem ver a teta da gaja. Devíamo-nos estar a aproximar da fronteira, e a mulher, num rasgo de inteligência tentar “esconder” uma caixa de perfume debaixo do soutien. E eu ali a presenciar aquele espetáculo de peles. Assim, chegou em boa hora a pica, que como se eu fosse um puto que tinha ido p’rá carteira de outro menino, me levou de volta à minha cabine. Esta pica sofria daquela enfermidade que afecta tanta gente, chamada de Tromba Gratuita. A Tromba Gratuita é uma doença que se apanha geralmente quando se passa dos vinte e tal anos. Há pessoas, pobres, que já nasceram com a tromba. Têm um caso de Mete-Nojo enquanto são chavalitos, que depois se desenvolve e se torna em Tromba Gratuita. Os sintomas desta doença vão desde a queixa contínua, a falta de habilidade em sorrir e, basicamente, intimidar toda a gente ao seu redor porque o pessoal pensa que a qualquer momento pode sair um berro. Tem cura, mas é difícil. Para algumas pessoas a cura está relacionada com uma ida à praia, para outras com fazer desporto, para outras é aceitar a sua homossexualidade e para outras pode ser uma coisa tão simples como caminhar à chuva. Há um sem número de possíves curas, mas isto é tanto um bom sinal, como um mau sinal. É que como a cura é tão diversa, o pessoal não sabe qual é a sua, e acaba por não se esforçar em procurá-la. De todo modo, o primeiro caso é uma análise da necessidade da tromba e dos efeitos que tem. Boa sorte.
               
Agora quando eu, dois dias mais tarde, descobri que o indiano também tinha malhado a Tromba Gratuita, passei-me um bocado.
- Já malhei quatro gajas – disse-me, ao segundo dia. Eu acreditei. – E tu?
-Eu não malhei nenhuma... p’ra dizer a verdade não estou interessado sabes...
- Tenta com a pica...
- Não pá, não estou à caça. E mesmo que tivesse, aquela mulher é horrível! – disse.
- Eu malhei-a ontem. E hoje – respondeu. Eu tive a oportunidade de confirmar, mais ou menos, isto. Ele estava a preparar-se para ir embora, e vi-o a enfiar a cabeça na cabine da mulher, e ouvi um beijo. Depois disto, a mulher diz-lhe algo, ele segue-a até à sua cabine, e ela diz algo tipo “isto está sujo” ou assim uma desculpa esfarrapada para entrarem os dois e fecharem a porta.
               
Mas voltando à primeira noite... depois da mulher me levar p’rá minha cabine, a senhora que dormia ao meu lado pediu-me para a ajudar. Queria que eu lhe levasse sete ou oito pares de meias. Pensei um bocado, disse ok. Não é uma cena que se deva fazer, se um gajo quiser ter cuidado com isto e aquilo. Mas que se lixe, a mulher precisava de ajuda, meti as meias na mochila, apalpei para ver se tinha outras cenas, tudo ok.
               
O divertido foi quando atravessámos a fronteira para sair da Mongólia. Disse divertido? Queria dizer stressante. É que a polícia vem ter comigo, normalmente, e pedem-me o papelito de entrada na Mongólia, que eu já não tinha. Não é grande problema. Mas não sei porquê, pediram-me para abrir a minha mochila grande. Tirei-a da bagageira, abro-a, e vejo um saco de plástico que não conhecia. Por um segundo ainda pensei que o Mike me tinha posto uma surpresa ali ou uma cena assim. Mas pego no saco, e estava cheio de calças. Depois outro, depois outro. Tinha três ou quatro sacos cheios de roupa que alguém tinha enfiado na minha mochila.
               
- Isto não é meu... – disse eu, já a pensar que ia ter de ficar ali ou de pagar uma fortuna para as taxas daquilo.
- Não é seu? – perguntou a mulher, enquanto tirava os sacos todos e os escrutinava. Para surpresa minha, depois de os tirar a todos, pousou-os algo descuidadamente na cama do lado, e bazou. E não a vi mais. Não se importou com cena. Mas eu não sabia que ela não voltaria, por isso aproveitei para devolver o saco de meias que a outra me tinha dado. Não queria mais stresses.
               
Pois estava eu já recostado, convencido de que não haveria stresse, quando aparece quem? Nada mais, nada menos, que o dono das cenas. Diz “sorry, sorry” e põe-se ali de joelhos a dobrar a sua roupinha que nem uma Maria que vai p’rá praia de Espinho. E pousa as cenas na minha cama e tudo. Eu dou-lhe um pontapé e digo-lhe “no good, no good” mas o gajo nem olhou para cima. Enfim, cenas.
               
Depois disto estivemos parados um bom bocado enquanto a minha colega de cabine vestia tanto quanto podia de tudo o que trazia. Aquilo era camisolas nas mamas, casacos no cu, meias nas pernas, tudo! E quando acabou a prova de roupa pediu-me, mais uma vez, para eu lhe levar as cenas. Ok, ok, lá levei aquilo. E foi na boa. Tinha pensado em pedir-lhe um par de meias, mas achei que era um bocado foleiro, porque eu não tinha feito aquilo para ser recompensado. Foi por isso que com agrado recebi o par de meias que me deu na mesma, apesar de não ter pedido nada. E pouco depois disto, ela pegou nas suas malinhas e bazou. E não apareceu mais ninguém na minha cabine. Demais, a cabine toda para mim nos quatro dias de viagem.
               
O resto dos dias foram dias de pás, sossego, água quente, filmes e séries, escrita, e corridas para ir comprar comida. É que a pouca comida que levou assemelhava-se excessivamente a comida de gato. Não sei se já referi isto aqui, porque estou a escrever este texto em dias diferentes, mas eu comprei aquela cena que eu pensava que era salsicha e acabou por ser pate para cães ou uma cena assim. Ou pelo menos assim parecia. Mas lá marchou.
               
Apesar de não ter nada para fazer senão o referido, não me senti aborrecido nem apanhei seca. Aliás, curti aquela rotininha. Foi como escapar de tudo, estar quatro dias absolutamente incomunicável (deixei o meu telemóvel no Laos), escrever, ver filmes, olhar pela janela, ler de vez em quando. Curti pá. Sofria um bocado com os preços europeus, mas tudo tranquilo. Ia gastando menos de cinco euros por dia para comer, e bebia água quente que estava no corredor para chás, à socapa. É que no primeiro dia a mulher pediu-me um euro. Quando eu perguntei para quê ela disse “chá, café...”. E eu, claro, disse que não queria. Acho que ela se referia a essa água, o que é estúpido, de certeza que isso é grátis, a bruxa má é que se aproveita. De qualquer maneira, acho que aquilo para mim acabou por ser como uma brincadeira para me entreter. Isto porque tinha de primeiro ir investigar e perceber se estava fechada no seu quarto ou não, e depois ia às escondidas encher o meu copito de água a ferver.
               
Parávamos mais ou menos, assim em média, uma vez a cada três horas por vinte minutos. Dava para um gajo ir esticar as pernas e comprar qualquer coisa. Pegar no leitorzito de mp3, vestir a camisola, sentir um bocado do frio que se espalhava pela Sibéria.
               
Quanto às séries e à escrita neste computador, era só ligar a ficha no corredor, enfiá-la debaixo da alcatifa e dava mesmo à certa para estar sentado encostadinho à porta. Se estivesse uma cabine mais abaixo seria mesmo perfeito. Mas quem se está a queixar?

Assim, noventa e três horas depois e alguns fusos horários, cheguei a Moscovo. Como logo no segundo dia não sabia em que fuso horário estava, decidi adaptar-me de imediato ao Moscovita, que tinha quatro horas de diferença com o de Ulan Bator.

Olá Europa, tive saudades tuas, talvez, não sei ao certo...

vinte e uma e sezasseis, segunda, dez de outubro de dois mil e onze
Kaunas, Lituânia