quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Xian



Os condutores perguntaram onde queriam que nos deixassem em Xian e eu disse que ali na zona do quarteirão muçulmano estava bem. Não foi muito boa ideia, porque estávamos um bocado partidos, e tivemos de caminhar um bom bocado. O Ilya é um gajo demais, por acaso. Não tivemos tripe nenhuma. E o gajo não stressava com nada. É claro que, por exemplo, nessa noite disse “devias ter dito ao méne para nos deixar mais perto” mas sem stresse nenhum. Não é que fosse uma situação que o exigisse, mas às vezes quando a malta está cansada stressa por tudo. A primeira vez que reparei nisso foi nos Estados Unidos, em dois mil e um. Foi a malta toda do liceu, festa (da pura, não da boémia dos tempos que correm) toda a noite, e no dia a seguinte a falta de sono punha o pessoal com o limiar do nervo perto da testa – o que quer que isso signifique.
               
Assim, vimos no mapa um hostel que parecia porreiro e barato, e seguimos caminho. Entretanto fiquei sem bateria no computador, e aquilo não estava fácil. É que já tínhamos caminhado uma hora e apesar de parecer estarmos perto, não tínhamos a certeza. Foi por isso que sorrimos ao ver o hostel aparecer ao fundo. Não era aquele que procurávamos, mas que interessa? Como em Chengdu, os preços tinham subido exponencialmente desde dois mil e sete. Era um hostel espetacular também, cheio de estátuas a imitar os guerreiros de terracota, tudo em estilo chinês, e paredes brancas cobertas com assinaturas, dedicatórias e desenhos de malta do mundo todo (não vi nenhum tuga). Mas apesar de toda essa fixeza, a última coisa que fiz antes de ir para a cama foi mandar uns dez pedidos no couchsurfing.

No dia seguinte acordámos e vi, mesmo a tempo de fazer o check-out, uma mensagem da Barbara a dizer que, se ainda fosse a tempo, nos podia albergar. Bacana. Arrumámos as cenas, pedimos à malta do hostel para a guardar e fizemo-nos à cidade.
               
Tínhamos conhecido por alguns minutos na noite anterior o David, da Col;ombia e o Dave, um méne de ascendência filipina, mas supostamente do Canadá. Conhecemo-los quando estávamos já a adormecer na noite anterior e entraram quarto dentro preparados para continuar a festa. Um encontro de cinco minutos. Pois nesse dia convidáram-nos para irmos almoçar, e de repente éramos oito pessoas, eu o Ilya, os dois Davids, um alemão e três norueguesas. O David colombiano era um gajo muito boa onda, porreiraço. O Dave “canadiano” queria ser fixe, mas esforçava-se um bocado. O meu instinto não apontava p’ráquilo. Além do mais acho que nos estava a tentar pregar uma grande peta. Falou da mansão que os seus pais lhe deixaram nas Filipinas com mordomos e não sei quê, e apesar de dizer que era canadiano, não tinha sotaque e de vez em quando dava uns erros. Eu disse-khe, sem problemas, que achava que ele nos estava a mentir. Ele não disse nada.
               
- Já estiveste na Mongólia? – perguntei, quando ele o tinha dado a entender.
- Já.
- E que tal?
- Muito foleiro, não tem nada aquilo, não tem McDonalds, não tem KFC,... – não preciso de dizer mais nada.

Andámos pela cidade essa tarde. Parecia que, a nível de grandes cidades, a China estava a ficar melhor. Kunming foi foleiro, Chengdu mais fixe e Xian mais ainda. Isto apesar de não termos visto a grande atracção de Xian, que são os guerreiros de terracota. Não sabíamos se queríamos ficar outro dia, e era um bocado caro. E, acima de tudo, muita gente dizia que era um bocado sobre-estimado. Pelo que decidimos deixar p’rá lá isso.
               
Lá p’rás seis e tal voltámos ao hostel para ir ter com a Barbara. A chavala chegou e foideu-se um clique de imediato. Estávamos super à vontade, e só de vez em quando fazíamos as perguntas do bufo que se faz a toda a gente quando se acaba de conhecer. É uma miuda muito especial. Tem vinte e seis anos e é o tipo de pessoa que vive com as suas próprias regras. Um espírito livre da Holanda que é professora de inglês à custa de um certificado falsificado por que pagou quarenta dólares. Tem também uma formação de assistente social que não é exactamente legal. Mas que posso dizer? Estou enviezado... porque parece o tipo de cena que eu se calhar criticaria, mas no entanto não sinto vontade de o fazer, talvez por curtir a rapariga.
               
Depois de um par de cervejas fomos para sua casa beber outras mais e ficámos lá no relax, até que fomos sair. Nos entretantos ainda mudámos a mobília à rapariga. O Ilya tem destes flashes de espontaneidade que curto.
               
- Blá blá blá e um dia destes quero mudar a mobília, p;or isto aqui e aquilo ali, blá blá blá – dizia a Barbie.
- Ok. Porque não agora? – perguntou o Ilya.
- A sério?
- Iá.

 Pelos vistos a noite de Xian é no hostel para onde eu e o Ilya íamos originalmente, hostel esse que é do outro lado da rua de onde acabámos por ficar. Não me lembro do nome, mas boa cena. Chegámos lá com as nossas bebidas, ficámos um bocado na parte do restaurante. Eu já estava a curtir bué só estar no restaurante, por isso foi com agrado que descobri que aquilo ainda nem era a noite noite. No bar encontrámos a malta da tarde, o colombiano e companhia. Passámos a noite entre o bar e a parte cá de fora ao fresco e onde o pessoal podia fumar. Malta de todo o mundo, bem como mutos chineses reunia-se ali, e falava-se de tudo e de nada, trocavam-se impressões com pessoas que nunca mais vamos ver, um pouco de tudo aquilo que eu curto bué.
               
O final da noite foi curioso. Estávamos num daqueles snacks de burraxola lá p’rás cinco da manhã num “restaurante” de rua, e houve uma tripe qualquer não sei onde. Um dos ménes mandou mensagem à Barbara e ela começou a flipar um bocado porque tinha de ir, apesar dos outros dois que estavam connosco dizerem para ela cagar no assunto – mais tarde, quando souberam que a tripe era no prédio deles e entre amigos deles já não achavam o mesmo. Mas a miuda estava um bocado naquela acerca de deixar os seus couchsurfers e não sei quê.
               
- Miuda, sem problema, – disse eu – tu faz o que tens a fazer, nós por cá estaremos – e assim ela o fez. Foi e veio num ápice. Nem sei que cena foi nem me interessa. Alguém que se estava a fazer à futura ex-mulher de outrém e merdas assim.
               
No dia seguinte íamos bazar para Pequim. Como diria a minha avó – p’óch!e (vem de “pois sim...”, caso não tenha dado para perceber). Acordámos às quatro da tarde, estava a Barbara a chegar a casa depois de um dia inteiro de trabalho. Arranjámos algumas cenas, tomámos banho, e eu e o Ilya fomos dar uma volta pela cidade. A Barbie tinha de se encontrar com uma amiga, por isso combinámos encontrarmo-nos mais logo no bar.
               
Mas desta feita a Barbara estava um bocado destruída e o Ilya não estava a fim de uma noitada. Jogámos um bilhar um par de horas, ela foi embora, mais uma horita e foi-se o russo. Eu fiquei com o Mario, italiano, e o Igo, belga, com quem estávamos a jogar bilhar. Curti muito o Igo, um gajo que trabalha a editar documentários e que fez um com um conceito brutal. Ainda na Bélgica, pegou num grupo de pessoas que não dispõe dos mesmos recursos que nós – dois ou três paraplégicos e um cego – e foi com eles, de carro, até Málaga, onde eles perderam a virgindade com prostitutas. O documentário chama-se Hasta La Vista. E eu acho uma ideia brutal. E é uma cena em que acho que nunca tinha pensado. Devido às óbvias circunstâncias, estas pessoas passam completamente ao lado de certas experiências que não nos cansámos de referir, como, bem, caminhar, ou ver, mas passam também completamente ao lado, por razões mais indirectas, de experiências que, quiçá para nós é melhor não pensar, como foder. Mas umas são possíveis, no fundo, e porque não fazê-las acontecer? Falei-lhe de duas ideias que também tenho que dariam documentários muito bons e que proporei mais tarde a quem ache que possa estar interessado, e ele deu-me um contacto que ainda não explorei. Nunca se sabe.
               
Mas assim, conversa aqui, conversa ali, a noite acabou, e eram três da manhã, o bar a fechar e eu ainda ali... e tinha de acordar às sete para começar a boleiar para Pequim. Parece mau, não parece? Mas não é. Porque mau, mau, foi não ter encontrado a casa e dormir duas horas na rua deitado à entrada de uma loja. Parece que não está a funcionar a minha estratégia de me convencer que sim, posso ser bom com orientação. E ainda por cima a Barbie desenhou-me um mapa! E eu andei ali, caminhei duas horas sem parar, voltas e mais voltas, corri aquela merda toda e nada pá. Cheguei a apanhar um táxi, reconstitui a caminhada que eu e o Ilya tínhamos feito nessa mesma tarde e... fui ter excatamente ao mesmo sítio onde tinha apanhado o táxi. Que será que o taxista pensou? Bem, quando acordei, caminhei um pedaço e percebi que tinha cometido um erro que tinha lixado tudo. Não era aquela passagem subterrânea, mas a outra antes dessa.
               
Lá dei com o sítio. Eles partiram-se a rir, depois de expressarem a sua surpresa. You win some, you lose some.
               
Chuveirada na benta, ala para Pequim.

vinte e uma e cinquenta e cinco-segunda-doze de setembro de dois mil e doze
algures entre Erlian e Ulan Bator





terça-feira, 27 de setembro de 2011

Chengdu



O Ilya e a Lena tinham conhecido uma chinesa num autocarro a caminho de Kunming que acabou por ir com eles para casa do Neri, e lá passar a noite. Diz que ela ficou apaixonada pelo conceito e que ia começar a albergar pessoal e não sei quê. Ela era de Chengdu. Por isso, quando chegámos, procurámos um centro comercial, montámos a tenda numa loja de fast-food, e o Ilya contactou-a. A comunicação não estava muito boa, sendo que el ligava do skype, mas deu para perceber que não ia dar. Ele foi à volta, disse que estávamos em Chengdu e que precisávamos de um hostel barato. Ela disse qualquer cena que não foi “ah, não precisam, podem ficar comigo”. Por isso procurei no meu lonely planet (de dois mil e sete) e encontrei um sítio que parecia porreiro. Metemo-nos no autocarro com o mapa na cabeça e o computador como auxílio. Saímos demasiado cedo no autocarro, e caminhámos, depois de um dia à boleia e com as mochilonas, mais de uma hora até chegarmos ao sítio onde supostamente o hostel era. Mas aquele mapa do lonely planet não é propriamente nenhum Moisés a guiar o pessoal. Assim, depois de p’rai mais hora e meia e de termos perguntado a seis ou sete pessoas, desistimos. Tínhamos desistido há um minuto quando o Ilya aponta para uma placa que dizia “Sim’s Cozy Place”, exactamente o sítio que procurávamos. Pena é que aquilo estava abandonado. Ok, plano dois. Vi outro hostel, Loft, e seguimos para lá. Mais um erro. É que este hostel estava lá, sim senhor, mas se em dois mil e sete uma noite custava dois euros, em dois mil e onze custava seis. Mas uma coisa é certa, é dos hostels mais fixes onde já estive. Muito boa onda mesmo, e com pormenores simples espetaculares, desde os quadros nas paredes, terem um gato ou terem na recepção uma parece com doze filas, cada uma com trinta e uma caixas – quem quisesse que eles enviassem o seu postal tipo dia cinco de Maio, punham na respectiva caixa, e o postal seguiria nesse dia. Ideia fixe.
               
Chengdu tem muito mais bom feeling do que Kunming, mas ok, é uma cidade de qualquer maneira. Na primeira noite curti, enquanto caminhávamos estafados, o que vi da cidade. No dia seguinte, no entanto, não descurti, mas não é nada que me tenha apaixonado. Para não pagar outra vez aquela exorbitância, procurámos um sofá, e a Ann foi fixe o suficiente para aceitar o nosso pedido tão em cima da hora. Vimos a cidade durante a tarde, depois apanhámos um autocarro para ir ter com ela. Quando saímos do autocarro, de mapa na mão, uma miuda de vinte e três anos (como a maior parte dos chineses, parecia ser mais nova vinte por cento) muito porreira perguntou se precisávamos de ajuda e acabou por caminhar connosco. Ia visitar a Europa brevemente, com o seu namorado francês. Ela ligou à Ann, que veio ter connosco de imediato.
               
A Ann nasceu na Coreia (do Sul – reparei que todos os sul-coreanos que conheci dizem que são da Coreia, não especificam sul ou norte), mas foi adoptada desde logo por um casal de dinamarqueses, que já tinha adoptado outras duas sul-coreanas. É uma rapariga com quem se passa um bocado interessante, sendo que quando fala da sua VIDA, parece que tem p’rai cinquenta anos, pensando em tudo o que já passou e em todos os sítios em que já viveu, apesar de ter apenas trinta. É dinamarquesa de nacionalidade, já viveu no Japão, por isso fala japonês, na Noruega, idem, fala francês, a língua do seu marido, fala espanhol, já nem me lembro a que propósito, e agora estava na China a aprofundar o seu chinês – note-se que a outra miuda que nos ajudou no autocarro ligou-lhe e só lhe falou em chinês e elas entenderam-se. Bem, impressionante. E eu pensava que até tinha jeito para línguas. Contudo, diz que não sabe fazer mais nada.
               
- É como se as línguas ocupassem todo o meu talento – disse a enfermeira que não o quer ser mais por achar que não tem muito jeito.
- Desculpa se te bombardeio de perguntas, mas é que nunca conheci ninguém que tivesse sido adoptado – desculpei-me, a meio do meu interrogatório. Quando conheço alguém numa situação que para mim é nova curto saber o máximo possível. Sem fazer a pessoa sentir-se estranha, claro. Ou assi, o tento. E realmente foi interessante falar com ela. Querendo conhecer as suas origens, já foi à Coreia do Sul, e querendo conhecer as suas origens o máximo possível, já tentou localizar a sua família.
- Para a minha irmã mais velha foi a coisa mais fácil do mundo. Tentou num dia, e no outro já sabia. Pelos vistos a família dela era muito pobre, e meteram-na num orfanato até se recomporem. O pai foi trabalhar para fora da aldeia, voltou, e quando foi buscar a filha, ela já tinha sido dada para adopção. Acontece muito assim. Mas comigo... não tive sorte...
- Vais continuar a tentar?
- Não sei...  acho que tenho de processar o facto de que talvez não vá conseguir encontrá-los... Mas não sei bem o que fazer. Se continuar à procura, se parar...
- Se calhar era bom dares-te a ti própria uma data limite. Tentavas o máximo até essa data, e se passasse, aceitavas os factos e libertavas-te disso... – tentei oferecer.
- Pois... mas é que eu já fiz isso. E depois voltei à carga – respondeu. Deu para entender que era algo que lhe custava. Mais tarde falei disso com o Ilya e ele achou a cena estranha, e não percebia a importância de querer tanto encontrar os pais biológicos.
- E depois?... P’ra quê? – perguntava. E eu não sabia responder. Também não percebia muito bem porque é que é tão importante para ela encontrar os pais biológicos, mas tinha, e tenho algo dentro de mim que o percebe. Não sei se é o facto de ser uma situação tão fora do que já vivi que me faz querer entender. Mas sei que é tipo um sentimento-instinto e que não consigo explicar de uma forma muito hábil. E não curto nada quando tenho de me sair com um “ai não sei explicar...” porque acho que isso é, geralmente, preguiça.
               
Depois do jantar, que a simpática rapariga fez questão de pagar, ela foi ao aeroporto buscar uma amiga e eu e o Ilya fomos para casa. Tivemos uma noite descontraída a ver uma discussão do bufo sobre livrarias e a sua possível extinção. Era um debate do bufo, se me perguntas. À volta e volta quando podiam dizer “Bem, eu acho uma pena, porque um livro é algo mais pessoal do que um download, e tem cheiro e etc” e o outro dizer o contrário. Pá, o meu primeiro impulso é dizer que os livros são muito mais fixes. Há, realmente, uma certa mística por detrás de um livro usado, talvez passado de geração em geração, as estórias que leva além da estória que conta, o aroma que nos põe naquele estado de espírito perfeito para ler, e o charme de uma sala com livros como paredes. Mas... só para imprimir o último (ou o quinto, um deles, não interessa qual, ou se calhar até cada um) Harry Potter mandara-se abaixo centenas de milhares de árvores – facto. Então se pensarmos com lógica, e se pensarmos nos recursos que são necessários para produzir um livro (em vez de simplesmente copiar um ficheiro), temos de chegar à conclusão de que é melhor para o mundo... livros digitais. A grande cena é que eu prefiro os livros com as páginas... mas acho que não o devia preferir. Em minha defesa, uma grande parte dos últimos livros que comprei eram em segunda mão.
               
Na manhã seguinte, demos uma olhada no mapa e pusemo-nos a caminho. Não foi nada fácil. Nada mesmo. Fomos de táxi até à saída da cidade, mas ainda assim tivemos que caminhar bué. E o Ilya estava meio empenado. Assim, com algum esforço, muitos quilómetros nas pernas e bastante tempo de espera, estávamos numa estrada que... não era grande coisa. Fomos andando pouco a pouco, com microboleias, passando por placas a indicar a autoestrada. É que o google maps dizia que era “por ali”, e esse “por ali” implicava não entrar já na autoestrada. Pá e um gajo tem de ver se segue as instruç.oes ou não. Umas vezes sim, outras que se lixe.
               
Tivémos de chegar à altura do “que se lixe”. É que estávamos já a chegar à terceira cidade (de uma longa lista) e o gajo do google mandava seguir em frente. Mas eu vi um sinal a dizer G5 e decidi ficar aí. O condutor levou-nos um pedaço, e estávamos nas portagens. Mas não podíamos entrar na autoestrada porque o pessoal não deixava. Como era de esperar, primeiro vieram os trabalhadores, depois um oficial qualquer, e depois a polícia a sério. “Sentem-se ali na relva, que aqui está sol” disse o polícia, com a sua linguagem gestual. Tínhamos percebido que nos iam ajudar, mas passou p’rai uma hora e ficámos na dúvida. Mas a cena é que a maior parte dos carros ia para Chengdu. Mas os gajos cumpriram, e a partir daí, apesar de um início terrível, foi um mimo. Camião, vruum, um táxi parou para nós e levou-nos de borla p’rai duzentos quilómetros, vruum vruum, depois outro cota, e assim, já o sol se tinha posto há algumas horas e estávamos numa estação de serviço p’rai a cento e cinquenta quilómetros. Mais uma vez os trabalhadores vieram ter connosco. E não é que nos sacaram uma boleia directinhos?... E eu que, depois daquele início nunca achei que ia chegar a Xian no mesmo dia, vi-me na cidade batia o relógio as onze horas. Fixe.

seis e meia da tarde-segunda-doze de setembro de dois mil e doze
algures entre Erlian e Ulan Bator




domingo, 25 de setembro de 2011

A Caminho de Chengdu



Dia vinte e seis começamos a nossa jornada de Lijiang até Chengdu, oitocentos e tal quilómetros. Foi uma viagem que nos levou três dias, canseira e paciência, mas curti bués. De autocarro demoraria “só” vinte e quatro horas, mas apesar disso, não sinto que nenhum segundo foi desperdiçado. Porque, para mim, viajar é isso. Ou é muito isso – andar sem saber como vai ser a próxima hora, em que meio de transporte, com quem; olhar à volta e sorrir por estarmos sozinhos no meio de uma montanha há mais de uma hora à epsera que passe um carro, só um, e que tenha a bondade de nos levar; de passar por estradas que ladeiam montanhas, vilas, ranchos e cenários que certamente nada mudaram desde há centenas de anos.
               
Tive um bocado de tudo isto, e isso mandou a China ali para o Top Três dos meus países preferidos. A Graciete diz que se “encanta” (cara de envergonhado) com a maneira como não acuso o número de países que já vi, nomeadamente em ser mais exigente e difícil de agradar. Pensei nisso um pedaço. É certo que tento abrir-me completamente para novos cenários e culturas, e isso faz com que o meu nível de curtição ande ali sempre a bombar. Mas por outro lado, acho que até os mais enjoados abririam a boca com as paisagens do sudoeste chinês. Ok, não tem tantas manicures onde servem champanhe e morangos, mas acho que é muito difícil não curtir.

O dia boleiante não começou muito bem. Acordámos cheios de sono e, tal como alguns dias antes, vimo-nos gregos para sair da cidade. É que o pessoal tem a bela da mania de, mesmo quando não sabe determinada direcção, apontar p’ráli e dizer “siga”. Infelizmente isso não é exclusivo da China. Então perguntámos lá a um méne onde era Numseionde e o gajo mandou-nos quase meia hora para trás. Apenas para depois voltarmos. Andámos meio sem saber onde estávamos um pedaço, e só passado duas horas chegámos à saída da cidade.
               
Fomos esperando mais ou menos quinze minutos entre cada carro. As estradas eram horríveis, e p’rai no quarto carro passámos por uma estrada onde tínhamos de andar p’rai a vinte à hora, ou até menos. Esse deixou-nos no meio do nada, arrisco-me a dizer – literalmente. Um pedaço de terra onde passava um carro a cada vinte minutos. Daquelas situações que fazem um gajo rir de tão peculiares. A dada altura passou um cota, bem devagarinho, mas limitou-se a sorrir e a apontar para a esquerda. Grande couro. Não nos queria era levar. E foi aqui que se passou algo interessante, uma espécie de carma dificil de ignorar. É que quando o cota passou e riu-se e tal mas ainda assim não nos levou, o meu primeiro (e único) instinto foi mandar-lhe um grande dum mangalho. Mas resisti. Resisti porque apesar de tudo era só um carro... Porque um gajo quando começa a boleiar não se sente logo frustrado, e é ignorado por um, dez, cem carros, e é tudo tranquilo. Mas a dada altura começa a flipar um bocado e apetece mandá-los todos para uma eventual mãe que os tenha dado à luz – mas é importante não esquecer que apesar daquele carro para mim ser o milésimo, eu para ele sou o primeiro. Assim, a custo, resisti. Enão é que passado dez minutos ele apareceu outra vez – tinha-se arrependido e veio para trás buscar-nos. Fiquei contente, porque se lhe tivesse feito o mangalho bem que podia esperar mais um bom pedaço.
               
Entrámos no Land Rover do cota, demos um par de curvas e PAM! Beleza. A estrada descia a montanha, aos S’s, com calma. O rio lá em baixo aguardava uma travessia nossa, o céu dava-nos o seu melhor e as montanhas tinham as vestes de gala. Adorei. Tinha de ter a cabeça de fora do carro, tinha de tirar fotografias, filmar, tinha de tudo. Tinha de fazer tudo que me permitisse embrulhar aquelas vistas e trazê-las na mochila para depois mostrar à malta.
               
Andámos com o cota um bom pedaço, p’rai hora e meia, até que parámos para almoçar. E que almoço. Encheram a mesa, e quando já estávamos espantados com a quantidade de comida, aparecia outra cena qualquer. Arroz, sopa de legumes, dois tipos de cogumelos com especiarias e vegetais, carne, ovos mexidos com tomate, tofu e outras cenas. Mas ainda assim, foi quase tudo. É que aqui o menino não deixa nada.
               
O senhor deixou-nos na primeira “grande” cidade depois de Lijiang. Fui perguntando à malta as direcções para a segunda – Yanyuen. Dizer que estávamos com o pé atrás é um eufemismo. É que apesar de toda a gente nos mandar para o mesmo sítio, esse sítio era uma estrada onde mal cabiam dois carros e que entrava, mais uma vez, montanha adentro. Então que era feito daquela estrada toda jeitosa que o google maps mostrava? Era aquilo, infelizmente. Como tinha guardado o mapa no computador, tive de confirmar. Estávamos abrigados da chuva debaixo de um telheiro. Iá, era aquilo. A estrada parecia que era mais uma estradinha por uns vinte quilómetros. Muito me enganas... Vinte quilómetros em linha recta, ok... Mas demorámos mais de três horas a chegar à próxima estrada principal que tinha mais buracos que a cara de um adolescente...
               
Como não passava nada, que se lixe, ‘bora caminhar. Caminhámos p’rai meia hora, as casas desapareceram e a estrada transformou-se num caminho de brita. Seguimos com um cota que também ia a pé. Passou um camião que levava calhaus para uma construção qualquer, pedimos para entrar, disseram que não, o cota disse qualquer coisa, e eles pararam e entrámos os três na carroça. Andámos dez minutos, e de volta ao penante. Seguimos caminho, e passou uma carrinha. Fixe, levou-nos. Fomos dentro do contentor na parte de trás sentados numas caixas de cervejas p’rai meia hora, convencidos que nos ia deixar naquela estrada que parecia jeitosa e “já ali”. Como diria a minha avó – p’óch! Pararam, iam seguir para a direita. E nós queríamos a esquerda.
               
Lindo, pá. à nossa frente tínhamos uma estrada de alcatrão negro, a contrastar com a terra vermelha da montanha. Parecia que a estrada acabava já ali à frente e o mundo engolirnos-ia. Mas não desapareceríamos sem mergulharmos no arco-íris que avistávamos sem esforço ali ao fundo. Demais. Caminhámos sorridentes tanto com o cenário que nos abraçava desde milhares de metros de altitude, como com, mais uma vez, aquela situação, de estar nao sabíamos bem onde, à mercê não sabíamos de quem.

Caminhámos mas percebemos que aquilo não valia a pena. Um bloco de pedra dizía-nos que estávamos no quilómetro treze. Pá não devia ser muito mais. Mas era. E, como já disse, na China parece que os quilómetros se multiplicam. Caminhámos um bom pedaço e só depois apareceu a placa catorze. ‘Tás é tolo. Caminhámos mais cem metros e deitamo-nos, a mochila como almofada, o mundo como pano de fundo.

Mas passou um carro. Nem demorou muito, só p’rai quarenta minutos. “Vais para Yunyan? Boa cena”. E lá fomos. Uma carrinha tipo Hiace com dois homens simpáticos à frente e um puto atrás. Mais uma grande corrida. Passámos por riachos, vilas e, para mim o mais impressionante, grandes vales onde se viam casas de madeira lá ao fundo, onde certamente o pessoal vivia quase da mesma forma que há centenas de anos. Pá tinhas uma montanha enorme, sem estradas sem nada, e vias do outro lado uma casa assim, como que se lá tivesse nascido, umas plantaçõezitas e algo que parecia albergar um ou outro animal. Lindo. Cabeça de fora, o Ventona fuça, o calor no coração. Siga.

Mas aquela estrada. A pior de toda a viagem. N.ao sei como é que o gajo conseguia fazer aquilo. O meu Clio ficava no primeiro buraco. Passado a primeira hora um gajo já começava, ainda que ainda a sorrir, a pensar “Ok se calhar já parávamos de andar às cabeçadas no tecto...”. Mas é daquelas cenas.

Mas acontece que o gajo não ia para Yunyan. Deixou-nos p’rai a cinquenta quilómetros. Mas foi fixe, andámos bués. Deixou-nos numa aldeia minúscula. Abrigamo-nos no telheiro de uma loja, talvez a única da aldeia, onde algum pessoal jogava cartas e fumava cigarros cá fora, tão admirados de nos ver como eu de estar ali. Uma chavalinha arranhava inglês. Disse-nos tal como tantos locais em tantos países, que era impossível boleiar. Disse-nos também que a aldeia tinha duzentas pessoas. Isso na China é como em Portugal uma aldeia ter uma pessoa, ahah. A rapariguinha também nos arranjou uns banquinhos e lá estávamos sentados, levantando-se um, à vez à vez, quando passava um carro. Sacámos boleia do quarto – o pior condutor da história. Ia dizer “o tipo de condutor que blá blá blá” mas esquece. Não há tipo para este condutor. Este condutor andava p’rai a setenta à hora com buracos que eram meninos para destruir o eixo do seu jipe todo fino. De vez em quando ele soltava um “ui, ui...” mas isso não o impedia de continuar. PAU PAU PAU! Ah, eadorava conduzir sem usar o limpa pára-brisas, apesar de estar a chover constantemente. E quando usava, não o ligava, como toda a gente. Não, ele fazia como se não houvesse opção de automático. Tipo rodava a cena, rodava outra vez para parar. E assim sempre. Só quando estávamos a chegar é que se lembrou do automático. Enfim. O que é certo é que nos levou. Desculpa lá condutor, não queria parecer ingrato.

Pois o méne deixou-nos numa cidade a dez quilómetros de Yanuyan. O nosso destino final ainda estava muito longe, era Chengdu, que ainda era a seiscentos e tal quilómetros. Quer dizer que só tínhamos feito duzentos e tal nesse dia. O Ilya estava com a pica de seguir, mas eu não estava a adivinhar sucesso. Estava a chover, não passavam carros, e eram p’rai nove e tal da noite. Num compromisso, decidimos esperar mais meia hora. Se não desse nada, ficávamos no hotel ali ao lado. Como sempre, enquanto esperávamos fomos rodeados de pessoal, o que nem sempre ajuda e às vezes até irrita um bocado, mas tudo tranquilo. Um méne falava inglês e até era fixe. Não apareceu carro nenhum, por isso instalamo-nos no hotel. Depois de deixar as cenas, fomos comer qualquer coisa. O Ilya, apesar de ter mostrado a sua mensagem a dizer que era vegetariano recebeu comida, ok, sem carne, mas com sopa de galinha. Infelizmente isto aconteceu p’rai dez vezes.
               
Jantados, voltámos ao hotel. O Ilya tinha ficado p’ra trás, por alguma razão. “Pêdra, Pêdra”, ouço-o chamar-me. Estava entusiasmado. E que era? Bem, era a lojinha do méne que falava inglês. Era um chinês p’rai da nossa idade, com calças de fazenda e um blazer até porreirinho. Tinha uma loja mesmo ali perto de onde o mau condutor nos tinha deixado. O Ilya chamava-me todo excitado da loja onde tinha entrado por alguma razão.
               
- Olha o que o gajo vend!e – dizia, apontando para... apontando para comprimidos de viagra, vaginas de plástico, vibradores, bonecas insufláveis, lingerie daquela de comer, sei lá, tanta cena quanto um gajo pode pensar. E ali, naquela vilita, naquela lojita de um metro por três. Demais, partimo-nos a rir e fomos bem dispostos para o quarto.

                No dia seguinte acordámos, tratámos das cenas do costume e pusemo-nos a caminho. Primeiro um carro, depois outro e estávamos em Yunyan. Mas estávamos dentro da cidade, má onda. Fomos caminhando um bom pedaço e lá apareceu alguém que nos tirou daquele martírio. Andámos o dia todo, sempre de vila em vila. De vez em quando aparecia um trecho bacana que dava a entender que se ia estender por um bom bocado, mas rapidamente acabava e eram mais estradas, que nem eram más, mas só de uma faixa, e passando por vilinhas. A dada altura estávamos numa vila e quando chegávamos estavam três ou quatro putos a brincar p’rai a cinquenta metros, e um homem a fumar cachimbo perto de nós. Esperámos meia hora por uma boleia, e quando bazámos estavam lá, sim, eu contei, vinte e cinco pessoas. Tudo abismado, sorridente e curioso com aquelas almas que por ali apareceram.
               
Quando o sol já se punha apanhámos o camião mais lento da China. De sempre. Íamos quase sempre a trinta ou menos, e parávamos a cada vinte minutos. É melhor que nada, eu sei. E ao longo de todo o caminho uma autoestrada imensa, quase uma ponte gigante – acho que daqui a uns anos boleiar na China vai ser ainda mais fácil. Este camionista deixou-nos no que parecia ser apenas uma ruazita onde os camionistas paravam para dormir. Havia ali um putedo tremendo. Mas versátil, porque também cozinhavam. Comemos noodles. Uns com os outros. O Ilya mostrou o seu papel a dizer que era vegetariano, e a mulher deu-nos noodles, mais nada. E foi na mesma.
               
Demos uma vista de olhos num hotel que tinha toda a pinta de ser para o pessoal cortiré com as miudas. Tinha preço para alugar só uma hora. Na altura para mim isso foi a confirmação. Hoje sei que o que não falta na China são hóteis com essa opção, desde o mais rasco ao mais sofisticado. O Ilya queria seguir viagem. Mais uma vez, combinámos tentar um pedaço, e se não desse, arranjávamos um quarto. Arranjámos uma boleia e até ficámos contentes, mas percebemos de imediato que o sítio onde estávamos era a entrada de uma cidade. Ok, não há crise. Demos uma volta na cidade, ainda tentámos seguir viagem mas passado um quarto de hora arranjámos um quarto.
               
- Ora aí está a o verdadeiro hotel todo podre, mesmo ao nosso jeito – disse eu, sorrindo, sendo que até então todos os hóteis eram caríssimos. Nunca saberei que cidade era aquela. O gajo do hotel falava connosco como se lhe tivessemos cortado um dedo do pé no dia anterior. Mas lá nos deu o quarto. Que nem era mau pá. Fomos comer qualquer coisa, e voltámos.

No dia seguinte chegaríamos, finalmente, a Chengdu. Após três dias de boleia. E foi suave. Primeiro um camião duas horas. Depois um carro que nos levou lá direitinhos. Ainda parámos para almoçar. Mais uma vez um banquete. O pessoal parece que pensa num número à sorte, multiplica-o por seis e o que for o resultado é o número de pratos que pede.

E finalmente – Chengdu.

vinte e cinquenta e um-quinta-oito-nove-onze
algures entre Pequim e Erlian







quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Shangri-La e Tiger Leaping Gorge



Dia vinte e quatro partimos para o Tiger Leaping Gorge, uma caminhada de um dia (ou mais, dependendo se se continua ou não) pelas montanhas que prometia ser espetacular. Não fomos mais cedo porque queria ver se as minhas feridas nos dedos dos pés saravam, para poder usar as sapatilhas. É que andar pelas montanhas de chinelos não vai com nada. Mas teve de ser.
               
Na noite anterior o Mário disse que talvez boleiasse também. Assim, fizemo-nos à estrada, íamos tentar um pedaço os três, e se não funcionasse, separavamo-nos. Não passaram mais de vinte minutos até aparecer um carro que podia levar apenas duas pessoas. Seguimos eu e o Ilya, e fomos ter direitinhos à Jane’s Guest House, o hostel logo no início, cinquenta metros depois de pagarmos cinco euros e pico para entrar na zona. Comemos qualquer cena, e o Mário apareceu p’rai meia hora depois de termos chegado. Porreiro. Comeu qualquer coisa também, guardámos a mochila maior, preparámos a mais pequena, demos uma olhada no roteiro, e seguimos.
               
Devemos ter sido, senão o grupo que saiu mais tardiamente, um deles. Não sabíamos muito bem por onde ir, mas cedo apareceram as setas que nos foram indicando o caminho. Sempre a subir até passarmos as “28 bends” (28 curvas, mais ou menos), uma série de curvas sempre a subir com uma inclinação nada simpática, foi uma grande esticada e uma caminhada sublime. Caminhámos quase sempre com os olhos pousados nas montanhas do outro lado do rio que batalha em se acomodar no pequeno espaço entre ambas as elevações, de vez em quando chove, de vez em quando aparecem as velhas com as suas “lojinhas” onde vendem água, nozes, bananas e sacos de ganza. Fazer aquilo de chinelos foi um desafio, mas correu bem. Só me custava um bocado porque estava de meias, para proteger as feridas, e isso fazia com que eles deslizassem, deixando-me com a tarefa de os agarrar constantemente com os dedos dos pés. Adorei aquilo, agora que penso nisso. É que senti-me vivo. Daquele vivo que nos faz abanar as árvores com a cara a apontar para o céu, e sentirmo-nos felizes com as gotas que se agarravam às folhas verdes e agora viajam pela nossa pele. Ou parar para recuperar o fõlego à beira de um precipício que nos deixa invejosos dos pássaros mas ainda assim felizes por ter a oportunidade de ver coisas daquelas. Estou a adorar a China.
               
Fomos lestos no nosso esforço, e chegámos ao destino, a Halfway Guest house, em cerca de cinco horas. Houve alturas em que pensei que aquilo estava a ser mais difícil do que antecipara, mas depois das 28 bends foi mais tranquilo. Foi um alívio ver os sinais com o nome do hostel, e quando chegámos absorvemos logo a boa onda daquilo. Era tudo de madeira, bastante grande, vários viajantes aqui e ali, e alguns ao redor de uma fogueira. Tomámos banho, sentámo-nos a admirar o que tínhamos à nossa frente. É que o hostel, estando numa encosta, tinha uma vista deslumbrante. Imagina sentares-te prontinho para uma derreada no quarto-de-banho, olhas para o lado e tens, sem vidro, sem nada, uma montanha a olhar para ti. Demais mesmo.
               
Passámos uma noite porreira. Jantámos, comprámos umas garradinhas de licor de arroz, e passámos o serão à conversa.
               
No dia seguinte tínhamos ainda uma cmainhada pela frente. Coisa pouca, quase duas horas. Fomos nas calmas, chegámos à Tina’s Guest House, almoçámos e apanhámos o autocarro para Lijiang. Tinhamos como opção boleiar, mas já era um bocado tarde, e alguns dias antes tínhamos precisado de oito boleias para fazer setenta quilómetros do mesmo percurso. Pareceu mais sensato metermo-nos num autocarro. Passaríamos a noite em Lijiang, e na manhã seguinte bota Chengdu.
               
Mal chegámos encontrámos o Philippe, franco-canadiano e amigo do Nick, com quem tinha estado alguns dias antes. Combinámos encontrarmo-nos logo no Stone The Crow. Depois de deixarmos as cenas no quarto, jantámos, e eu e o Mário fomos ter com o pessoal. O Ilya ficou, não estava com o feeling. O Nick já não andava como Ian e o Tim, mas ainda com a Tanya e o Phil, e outro pessoal. Uma alemão e um alemão e duas israelitas. Topei que havia ali algo a rolar entre o Nick e uma delas. Ele não desmentiu. E isso acabou por ter um impacto na sua decisão de não ir connosco no dia seguinte. É que ele tambem ia para Chengdu, só que já tinha comprado o bilhete, por mais de trinta euros, mas comos os autocarros estavam esgotados, só podia bazar passado cinco dias. Disse-lhe para ele cagar para o bilhete e boleiar connosco. O gajo ficou naquela, mas estava renitente caso eu e o Ilya apanhássemos uma boleia e ele tivesse de ficar sozinho. É pena, não pelo facto de ele não ter vindo connosco, mas porque é um gajo porreiro mas que se calhar se devia mandar mais de cabeça em algumas cenas. Ou então sou eu que acho que toda a gente devia fazer aquilo que eu acho que é fixe ou bom.
               
Dia vinte e seis partimos em direcção a Chengdu. Demoraríamos três dias a lá chegar, mas foi uma viagem espetacular.

20h03-6-2-9-11
algures entre Xian e Pequim





terça-feira, 20 de setembro de 2011

Lijiang e Shangri-La



Chegámos a Lijiang dia vinte. O casal foi fixe, levou-nos até ao centro, e depois andou lá às voltas connosco à procura do nosso hotel até que começou a ser demasiado tempo e eu e o Ilia agradecemos e dissemos que tínhamos encontrado a nossa estadia. Eles foram à sua VIDA e nós andámos às voltas à procura de um sítio barato, e a Mama Naxi (que tinha visto no Lonely Planet) se possível. Parecia que cada cidade era mais cara que a anterior. Eventualmente passámos pelo Stone The Crow, um bar onde entrámos para pedir ajuda. O Ross, um galês calmo e simpático levou-nos à Mama Naxi, onde havia um quarto à nossa espera por cerca de três euros e meio cada um.
               
Curti aquele hostel. O quarto era razoável e a internet muito fraquinha, mas havia boa onda ali. Bons viajantes, e um staff muito porreiro, especialmente a própria Mama Naxi, que de vez em quando andava a distribuir beringelas em pão ralado ou bananas. Antes de bazarmos deu-nos também um fio para p;or ao pescoço com um saquinho de bom cheiro. “Para dar boa sorte”, disse, como que adivinhando que íamos precisar de sorte à boleia.
               
Sobre os “bons viajantes”, comentava ontem com o Ilia que os turistas na China são muito diferentes daqueles no sudeste asiático. São mais viajantes do que turistas, de acordo aqui com o meu dicionário. Para começar, há muito menos ingleses. Depois, não há aquela chavalada toda a dar estrondo e, acima de tudo o que mais me irrita, a queixar-se de tudo – porque isto é lento, ou aquilo está sujo, ou aquela cena não faz sentido. Enfim, essas cenas todas que se ouve no sudeste em qualquer viagem de autocarro.
               
Demos uma volta pela parte velha, tudo o que me parece valer a pena conhecer em Lijiang. É fixe, talvez mais fixe do que Dali, mas também cheio de turistas. Mas, também tal como em Dali, a grande maioria dos turistas são chineses. A parte velha ainda é bastante grande, e é super fácil perder-se por aquelas ruas de calçada ladeadas por lojas de esculturas de madeira, lojas de vinis com o staff a cantar e tocar djambé, ou os inúmeros restaurantes.
               
Voltámos para fazer uma cena qualquer ao hostel, e estávamos sentados cá fora à espera não sei de quê, quando ouço “Dud!e”>. Quem era? O Nick, australiano, que tinha conhecido em Bangkok mais de dois meses antes. Que cena. Encontro no Laos um casal que conheci no Paquistão, e encontro na China um méne que conheci na Tailândia. Após o nosso primeiro momento de estupefacção a malta apresentou-se. Ele estava a viajar com o Philippe, franco-canadiano, a Tanya, australiana de origem asiática, o Tim, holandês, e o Ian, americano. Um grupo muito porreiro. Eu e o Ilia íamos jantar ali ao lado, então combinámos encontrarmo-nos logo. Eles queriam jogar Power Play, um jogoinventado pelo Nick e o Tim e que envolve um bilhar mas que não se pode dizer que é um snooker convencional.  Fomos comer ao meu restaurante preferido, com umas Dan Dan Noodles que curti tanto que comi três ou quatro vezes, a malta apareceu, juntamo-nos a eles e demos uma volta pela cidade. Tanto quanto conseguimos, sendo que aquilo estava apinhado como o metro em hora de ponta em Kuala Lumpur quando fui roubado.
               
Posto isto, seguimos para o Stone The Crow. O Power Play envolve beber cerveja, e a cerveja lá era um bocado cara. Mas com um “contracto” para beberem um número razoável, conseguimos baixar o preço cinquanta por cento. Então qual é a cena do Power Play? Prometi que ia partilhar as regra do jogo, por isso aí segue.
               
Para já, é um jogo que só visto mesmo é que se percebe a intensidade da cena. Mas vou tentar explicar duma forma concisa. Duas equipas de dois elementos (digamos, numa equipa os elementos são A e B, e noutra X e Y), um taco por equipa. Uma mesa ao lado do bilhar com as cervejas dos elementos. Se não der para estar ao lado, então que estejam duas (de elementos da mesma equipa) numa mesa numa ponta, e outras duas (dos outros dois) noutra ponta. Ao abrir o jogo, as bolas nunca podem estar organizadas no triângulo convencional – que seja um quadrado, um triângulo de lado, ou outra cena qualquer. Basicamente seguem-se as regras normais do snooker, mas após as bolas pararem de rolar, a próxima pessoa só tem três segundos para jogar (toda a gente conta alto, mas não é obrigatório, claro). Geralmente quando a malta falha os três segundos falha p’rai por um segundo e acaba por jogar na mesma. Mas como demorou mais do que três segundos, vai a correr dar dois goles da sua cerveja, não sem antes passar o taco ao companheiro de equipa. Sempre a correr, porque o pessoal joga tão rápido que quando alguém tem de ir beber, muitas vezes quase já não chega a tempo para jogar sem violar a regra dos três segundos. Se o elemento A mete a branca fora, vai beber, e o elemento X põe a bola no sítio mais perto de onde saiu e continua a jogar, mas tendo duas tacadas por castigo para a outra equipa. Iá, não se saca. As penalidades são duas tacadas para a outra equipa. Outra cena é que mal se entra no bar, já se sabe quem vai buscar as cervejas e quem vai organizar o jogo, e quem vai abrir, de forma a que seja uma entrada de rompante. Bem, é mais ou menos isto. Eu não joguei por causa duns ferimentos nos dedos dos pés (é muito fácil ser calcado) mas é uma moca, muito fixe. Experimentem.
               
Essa noite foi fixe. Entretanto a malta bazou e eu fiquei até às quatro à conversa com uma norueguesa e um italiano. Tinha-me esquecido que o hostel fechava a porta à meia-noite, uma da manhã mais tardar. Por isso cheguei, ainda equacionei dormir à porta, mas bati um par de vezes e uma senhora com cara simpática deixou-me entrar. Cool.
               
No dia seguinte demos mais umas voltas pela cidade. Eram umas sete, e estávamos na descontra no quarto, quando conheci o oitavo português desta viagem. O Mário tinha acabado de chegar, estava a fazer o check-in quando o gajo do hostel, de acordo com o Mário visivelmente excitado, lhe disse que tinham outro português – o que era raro. Assim o Mário apareceu, e juntou-se a mim e ao Ilya nessa noite e nos quatro dias seguintes.
               
O Mário, gajo muito boa onda e conversador, calmo sem ser aborrecido, está a tirar um mestrado em Tóquio, e já lá vão dois ou três anos, o tempo suficiente para já dominar o japonês confortavelmente. Aos dezoito anos foi estudar escultura para a Itália, fez lá o curso todo, e depois disto apareceu uma bolsa do governo japoês, uma oportunidade que ele não deixou escapar. Já andou pelo sudeste asiáico também, noutras férias, e agora passava umas semanas na China. Era para ficar em Lijiang, mas acabou por decidir vir para Shangri-La connosco. Não literalmente, sendo que nós íamos boleiar e ele ia de autocarro, mas combinámos encontrarmo-nos lá p’rás seis no hostel.
               
Acordámos às sete e tal no dia segiunte e pusemo-nos a caminho. Não foi fácil, mas tambémnão foi difícil. A cena é que na China cada quilómetro parece que vale p’rai quatro ou cinco. E foi por isso que precisámos de oito boleias para fazer setenta quilómetros. Oito! E nem foi aquela cena de estar sempre a andar um bocadito e sair. Em alguns carros andámos um bom pedaço, mas por alguma razão, a nossa percepção não conseguiu discernir aquelas distâncias. Tínhamos chegado à vila do Tiger Leaping Gorge, um percurso de trekking que faríamos dois dias depois, quando começamos a equancionar apanhar um autocarro. Já eram quatro e tal e o caso estava mal parado. Até que apareceu uma família bué de fixe que nos levou direitinhos a Shangri La. E que cenários pessoal. Sempre montanha acima até estabilizarmos nos três mil e duzentos metros, parando de vez em quando para fotografias. Antes de vir para a China não sabia bem o que esperar. Ainda assim, o que tenho visto não tem nada a ver com qualquer ideia que tenha tido. Nessa viagem começei a apaixonar-me pela China. E foi interessante perceber a curta distância a que estávamos do Tibete. As pessoas vestiam-se de uma maneira completamente diferente dos outros sítios onde tínhamos estado e tinham trços diferentes também. Não tanto os traços, porque para mim às vezes é difícil perceber as diferenças entre etnias asiáticas, mas mais a tez da pele. Apesar de Shangri-La ser cada vez mais turístico, sentia que tinha ali um retrato da verdadeira China.
               
A família deixou-nos na parte velha, e estávamos a caminho do hostel onde combináramos encontramo-nos com o Mário, quando o vimos a acenar do Dragon Hostel. Fixe, ficámos lá. Um dormitório por três euros e meio. Mas era um hostel muito bacana, com uma sala para o relax muito fixe. O Mário tinha conhecido o Tom, e fomos jantar os quatro. O Tom é australiano, formou-se em ciências políticas mas está à espera agora da resposta de uma universidade de medicina para onde concorreu. É um gajo com mais de um metro e noventa, um vozeirão que mete medo, e um sentido de humor mordaz e inteligente. Gajo muito fixe, que curtia ver outra vez.
               
Depois de jantarmos e andarmos, em vão, à procura de um sítio com bilhar, voltámos para o hostel. Apostámos dez cêntimos cada um e jogámos Jenga durante quase duas horas. Foi um serão descontraído, ligeiro.
               
No dia seguinte andámos por Shangri-La. O Mário já tinha bazado (aparentemente esperou até às dez  e depois foi à sua VIDA – não tínhamos nada combinado). Despedimo-nos do Tom, que ia para Numseionde, e fomos dar uma volta, depois de almoçarmos num tasco muito porreiro e barato ali pertinho. Bem, porreiro p’ra mim, porque para o Ilya nem por isso. É que ele mostrou o seu papelinho onde está bem explicado, em chinês, que é vegetariano e que quer algo sem carne ou peixe, e ainda assim carne ele levou. Mas a senhora foi fixe e não o fez pagar. Ele não pagaria de qualquer maneira. E agora lembrei-me de um episódio em Lijiang que não foi muito fixe, e que acho que não contei. Certo dia fomos almoçar e eu, como de costume, apontei para uma comida com um preço porreiro à frente e pedi isso. Era algo que custava cinquenta cêntimos. Comi nas calmas, ia a pagar, e a mulher diz-me que era um euro. Eu aponto para o que pedi, e para o preço, e estendo-lhe os cinquenta. A mulher começa a fritar e começa aos gritos a apontar para a galinha. Eu, com uma calma que pelos vistos me é característica, tentei explicar que não pedi nada mais do que aquele prato por cinquenta, e que não ia pagar mais nada. Que faz ela? Faz-se à minha máquina fotográfica. Então estamos ali os dois, com as mãos na máquina, entrentato aparece também a filha e estão as duas entre a mesa e a parede a tapar-me a saída, e o Ilya atrás a tentar ajudar mas em saber bem o que fazer. Numa esticada consigo tirar a máquina, e tento sair, mas a mulher não me deixa sair. Agarra-me e só consigo passar mesmo à força com ela a agarrar-me a t-shirt. Um stresse dos mais estúpidos que tive. E nunca pagaria aquele preço, por mais irrisório que fosse, e por mais rico que eu fosse. Pois pagando ia estar a contribuir para aquela treta.
               
 De volta a Shangri-La. Primeiro andámos pela parte mais nova duas ou três horas, aquele caminhar sem destino. Chocou-me um bocado o mercado. Quem estiver na dúvida entre ser vegetariano ou não e vir um mercado daqueles muda na hora. Dizer que metia nojo a maneira como tratavam a carne é algo que fica aquém...
               
Foi fixe andar pela cidade, ainda que por sítios nem por isso muito interessantes como é a parte nova, e não ver estranjeirada em todo o lado como no sudeste asiático. A dada altura começamos a ficar cansados, e fomos ao hostel fazer uma pausa. Lá encontrámos o Mário e passado um pedaço continuámos, desta feita pela parte velha. Acho que gosto mais de Shangri La do que Dali e Lijiang. É mais esotérico, ali nas montanhas, com aqueles chineses de outra etnia, as vestimentas rústicas... o Tibete tão perto.
               
Quando já estávamos cansados para andar mas ainda era cedo para ir jantar, fomos jogar bilhar. Fomos a um sítio que tínhamos encontrado na noite anterior, jogámos uma horita (ganhei vinte cêntimos) efomos jantar. Quando voltámos ao hostel, a malta estava a ver um filme na sala de estar. Juntámo-nos ao pessoal.

No dia segiunte, Tiger Leaping Gorge.

dez e cinquenta e três-d-vinte e oitro de agosto de dois mil e onze
algures entre Numseionde e Emeishan